A tragédia de Julieta é de todas nós.
Julieta Hernandez foi brutalmente assassinada enquanto viajava pedalando no interior do Amazonas. Violentada, queimada e asfixiada. Os culpados, apesar de confessarem o crime, sustentam versões diferentes do ocorrido. Em todas as versões, porém, a motivação é a mesma. Seu gênero.
O interior da região Norte é conhecido pela alta incidência de crimes violentos — não cabe aqui tratar das várias causas dessa regionalidade. Também é reconhecidamente a região de maior número de feminicídios do país (segundo estudo conjunto da Fiocruz, UFRN, Inca e Uerj de 2023). Em vários centros de pesquisa, estudos de campo na região vedam a ida de pesquisadoras sozinhas. De pesquisadores, não.
A particularidade violenta da região, entretanto, apenas salienta o que está presente em todo território brasileiro. A proporção nacional de feminicídios no Brasil a cada 100 mil habitantes é o dobro do número considerado pela OMS como “situação de extrema violência para mulheres” (há de se salientar, sempre, que essa proporção aumenta 1,7 vezes se consideradas apenas mulheres pretas). Não importa o local, ser uma mulher sozinha na rua configura, por si só, atividade de risco. Sozinha, pedalando, então, para alguns é considerado argumento justificador da violência.
Em São Paulo, as mulheres das comunidades ciclistas trazem inúmeros relatos de abordagens violentas vindas de homens pedestres, motoristas e até pares. Tentativas de atropelamento, perseguições (literais) e assédio verbal e sexual não são incomuns na vida de mulheres ciclistas de diferentes origens e em diferentes regiões da cidade. A violência motivada pelo gênero, nesse âmbito, é subestimada, conforme demonstra a falta de estudos nesse sentido, com exceções como a dissertação de Mestrado de Marina Harkot, ativista assassinada enquanto pedalava em 2020.
Não à toa, o conteúdo de várias dessas agressões verbais e aproximações violentas, no geral, tem pouco a ver com a condição de ciclista, e muito com a condição de mulher. A bicicleta, radical em sua origem, capaz de dar autonomia a minorias apartadas do status quo, serve como um catalizador da violência que já está pungente na nossa sociedade (cabe lembrar que um(a) ciclista morre por dia no estado de São Paulo (Infosiga)).
É por isso que a morte de Julieta traz uma dor que transcende a perda inestimável de um ser humano (segundo quem a conhecia, a quem envio minhas sinceras condolências, ela era luz na condição de mulher, artista, transgressora, ciclista, amiga e muito mais).
Sua partida violenta reverbera em uma realidade comum a todas as mulheres em território brasileiro. Em que pese a interseccionalidade de região, classe e raça, a toda mulher é vedada a autonomia, a liberdade e a simples existência.
Referências:
MEIRA, Karina Cardoso et al. Female Homicides in Brazil and Its Major Regions (1980–2019): An Analysis of Age, Period, and Cohort Effects. Violence against Women, 10778012231183657, 2023. doi: 10.1177/10778012231183657.
Brasil bate recorde de feminicídios em 2022, com uma mulher morta a cada 6 horas. Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidios-em-2022-com-uma-mulher-morta-a-cada-6-horas.ghtml>.
HARKOT, Marina Kohler. A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo. 2018. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/D.16.2018.tde-17092018–153511. Acesso em: 2024–01–08.
Homicídios de mulheres no Brasil aumentam 31,46% em quase quatro décadas. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/homicidios-de-mulheres-no-brasil-aumentam-3146-em-quase-quatro-decadas>.